9/14/2011

O Pequeno Príncipe e a raposa

CATIVAR
E foi então que apareceu a raposa:
- Bom dia, disse a raposa.
- Bom dia, respondeu polidamente o principezinho, que se voltou, mas não viu nada.
- Eu estou aqui, disse a voz, debaixo da macieira...
- Quem és tu? Perguntou o principezinho. Tu és bem bonita...
- Sou uma raposa, disse a raposa.
- Vem brincar comigo, propôs o principezinho. Estou tão triste...
- Eu não posso brincar contigo, disse a raposa. Não me cativaram ainda.
- Ah! Desculpa, disse o principezinho.
- Após uma reflexão, acrescentou:
- Que quer dizer “cativar”?
- É uma coisa muito esquecida, disse a raposa. Tu não és ainda para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens necessidade de mim. Não passo a teus olhos d uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo...
...Mas a raposa voltou a sua idéia.
- Minha vida é monótona. Eu caço as galinhas e os homens me caçam. Todas as galinhas se parecem e todos os homens se parecem também. E por isso eu me aborreço um pouco. Mas se tu me cativas, minha vida será como cheia de sol. Conhecerei um barulho de passos que será diferente dos outros. Os outros me fazem entrar debaixo da terra. O teu me chamará para fora da toca, como se fosse música. E depois, olha! Vês, lá longe, os campos de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim é inútil. Os campos de trigo não me lembram coisa alguma. E isso é triste! Mas tu tens cabelos cor de ouro. Então será maravilhoso quando tiveres me cativado. O trigo, que é dourado fará lembrar-me de ti. E eu amarei o barulho do vento no trigo...
E a raposa calou-se e considerou por muito tempo o príncipe:
- Por favor... cativa-me! Disse ela.
- Bem quisera, disse o principezinho, mas não tenho muito tempo. Tenho amigos a descobrir e muitas coisas a conhecer.
- A gente só conhece bem as coisas que cativou, disse a raposa. Os homens não têm tempo de conhecer coisa alguma. Compram tudo prontinho nas lojas. Mas como não existem lojas de amigos, os homens não têm mais amigos. Se tu queres um amigo, cativa-me!
- Que é preciso fazer? Perguntou o principezinho.
- É preciso ser paciente, respondeu a raposa. Tu te sentarás primeiro um pouco longe de mim, assim na relva. Eu te olharei com o canto do olho e tu não dirás nada. A linguagem é uma fonte de mau-entendidos. Mas, a cada dia, te sentarás mais perto...
No dia seguinte o principezinho voltou.
- Teria sido melhor voltares à mesma hora, disse a raposa. Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz. Quanto mais a hora for chegando, mais eu sentirei feliz. Às quatro horas, então, estarei inquieta e agitada: descobrirei o preço da felicidade! Mas se tu vens a qualquer momento, nunca saberei a hora de preparar o coração...É preciso ritos...
... Assim o principezinho cativou a raposa. Mas, quando chegou a hora da partida, a raposa disse:
- Ah! Eu vou chorar.
- A culpa é tua, disse o principezinho, eu não queria te fazer mal; mas tu quiseste que eu te cativasse...
- Quis, disse a raposa.
- Mas tu vais chorar! Disse o principezinho.
- Vou, disse a raposa.
- Então, não sais lucrando nada!
- Eu lucro, disse a raposa, por causa da cor do trigo.
Depois ela acrescentou:
- Vai rever as rosas. Tu compreenderás que a tua é única no mundo. Tu voltarás para me dizer adeus, e eu te farei presente de um segredo.
Foi o principezinho rever as rosas:
- Vós não sois absolutamente iguais a minha rosa, vós não sois nada ainda. Ninguém ainda vos cativou, nem cativaste a ninguém. Sois como era minha raposa. Era uma igual a cem mil outras. Mas eu fiz dela um amigo. Agora ela é única no mundo.
E as rosas estavam desapontadas.
- Sois belas, mas vazias, disse ele ainda. Não se pode morrer por vós. Minha rosa, sem dúvida um transeunte qualquer pensaria que se parece convosco. Ela sozinha é porém mais importante que vós todas, pois foi a ela que eu reguei. Foi a ela que pus sob uma redoma. Foi a ela que eu abriguei com o paravento. Foi dela que eu matei as larvas ( exceto duas ou três borboletas). Foi a ela que eu escutei queixar-se ou gabar-se, ou mesmo calar-se algumas vezes. É a minha rosa.
E voltou, então, à raposa:
- Adeus, disse ele...
- Adeus, disse a raposa. Eis o meu segredo. É muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos.
- O essencial é invisível para os olhos, repetiu o principezinho, a fim de se lembrar.
-Foi o tempo que perdeste com a tua rosa que fez tua rosa tão importante.
-Foi o tempo que perdi com a minha rosa... repetiu o principezinho a fim de se lembrar.
- Os homens esqueceram essa verdade, disse a raposa. Mas tu não deve esquecer. Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas. Tu és responsável pela rosa...
- eu sou responsável pela minha rosa... repetiu o principezinho, a fim de se lembrar.

Sinto-me responsável por todos aqueles que eu cativei, ou que me cativaram. Isso é fácil? Não. Por vezes deixo de cuidar bem de cada um, com carinho e atenção que merecem. Mas cada amigo é para mim algo inestimável. É a grande oportunidade de aprender e de crescer como pessoa.Há pessoas que são um equívoco, que talvez eu não soubesse cativar, ou que talvez eu reconhecesse nelas as minhas fraquezas e defeitos, e sendo assim eu descartei, deixei de lado de uma vez. Outras o tempo e espaço separaram, mas são como o trigo para mim, uma simples recordação me remete aos bons momentos juntos.Eu amo todos que me cercam. Gostaria que todos soubessem, caso eu não tenha dito. As palavras, às vezes ficam travadas em nossa garganta, simplesmente não saem. Mas quando me encontrar, saiba que é com um grande abraço que retribuirei tua amizade.


Antoine Saint-Exupéry

Juca Mulato




A Mandiga

Juca Mulato apeia.
É macabro o pardieiro.
Junto à porta cochila o negro feiticeiro.
A pele molambenta o esqueleto disfarça.
Há uma faísca má nessa pupila garça,
quieta, dormente, como as águas estagnadas.

Fuma: a fumaça o envolve em curvas baforadas.
Cuspinha; coça a perna onde a sarna esfarinha
a pele; pachorrento inda uma vez cuspinha.

Com o seu sinistro olhar o feiticeiro mede-o.
- Olha, Roque, você me vai dar um remédio.
Eu quero me curar do mal que me atormenta.

- Tenho ramos de arruda, urtigas, água benta,
uma infusão que cura a espinhela e a maleita,
figas para evitar tudo que é coisa feita...
Com uma agulha e um cabelo, enrolado a capricho,
à mulher sem amor faço criar rabicho.

Olho um rasto, depois de rezar um bocado
vou direitinho atrás do cavalo roubado.
Com umas ervas que sei, eu faço, de repente,
do caiçara mais mole, um caboclo valente!
Dize, Juca Mulato, o mal que te tortura.
- Roque, eu mesmo não sei de este mal tem cura...

- Sei rezas com que venço a qualquer mau olhado,
breves para deixar todo o corpo fechado.
Não há faca que o vare e nem ponta de espinho:
fica o corpo tal qual o corpo do Dioguinho...
Mas de onde vem o mal que tanto de abateu?

- Ele vem de um olhar que nunca será meu...
Como está para o sol a luz morta da estrela
a luz do próprio sol está para o olhar dela...

Parece o seu fulgor quando o fito direito,
uma faca que alguém enterra no meu peito,
veneno que se bebe em rútilos cristais
e, sabendo que mata, eu quero beber mais...

- Eu já compreendo o mal que teu peito povoa.
Dize Juca Mulato, de quem é esse olhar?
- Da filha da patroa. - Juca Mulato! Esquece o olhar inatingível!
Não há cura, ai de ti, para o amor impossível.
Arranco a lepra do corpo, estirpo da alma o tédio,
só para o mal de amor nunca encontrei remédio...
Como queres possuir o límpido olhar dela ?
Tu és qual um sapo a querer uma estrela...

A peçonha da cobra eu curo... Quem souber
cure o veneno que há no olhar de uma mulher!
Vencendo o teu amor, tu vences teu tormento.
Isso conseguirás só pelo esquecimento.
Esquecer um amor dói tanto que parece
que a gente vai matando um filho que estremece
ouvindo, com terror, no peito, este estribilho:
"Tu não sabes, cruel, que matas o teu filho?"

E, quando se estrangula, aos seus gemidos loucos,
a gente quer que viva e vai matando aos poucos!
Foge! Arrasta contigo essa tortura imensa
que o remédio é pior do que a própria doença,
pois, para se curar um amor tal qual esse...

- Que me resta fazer ? - Juca Mulato: esquece!

Menotti Del Picchia